Medicina Baseada em Evidências

Underuse: o negligenciado "underground" do sistema de saúde

Por Dr. Wanderley Marques Bernardo 
 
O papel da evidência científica tem sido considerado um estímulo ao “overuse” de medicamentos, de tecnologias diagnósticas ou de qualquer outra forma evolutiva de cuidado aos pacientes, mas este conceito apenas traduz o desconhecimento deliberado ou involuntário desse papel.

Na verdade, a evidência científica tem como propósito fundamental garantir que o essencial seja oferecido aos pacientes a todo tempo, de modo homogêneo, sustentável e mensurável, e é claro com publicização, transparência e reavaliação constante dos resultados. O que em outras palavras é o antônimo de “overuse”.

O desconhecimento deliberado ou a distorção proposital tem como base o pensamento vigente de capitalismo universal, que em sua premissa básica estimula o consumo e rechaça qualquer tentativa de restringi-lo a um pensamento simples, básico, necessário e equânime, inclusive resistindo com todas as forças à implementação dos conceitos de prática baseada em evidência. E isto é muito lógico, pois parametrizar cientificamente as condutas de maior benefício e de menor dano para todos os pacientes, praticamente tornaria a saúde em um mercado pouco atrativo, sem especulação, sem grande movimento de capital, previsível e com uma irritante estabilidade e equidade.

E neste cenário, se a questão fosse apenas de “overuse”, as consequências principais aos 
sistemas seriam apenas relacionadas a mercados competitivos, com foco minimamente na sobrevivência e maximamente no ganho de capital, onde os mais fracos” serão coaptados pelos mais “fortes”. E, sendo assim, sistemas público e privado têm de maneira comum suas atenções voltadas para a economia de recursos, mas paradoxalmente se retroalimentam e competem entre si por falta de parâmetros que homogeneizassem suas práticas, estabelecendo equidade no país e eliminando o “underuse”.

Eu não tenho dúvida que o “underuse” neste século é a maior perversidade que se pode ofertar aos pacientes, uma vez que ao aceitarmos que todos temos os mesmos direitos de acesso à saúde, como tolerar a ideia desse acesso não ser garantido devido ao desequilíbrio produzido pelos interesses dos diversos “stakeholders” envolvidos na assistência à saúde, e à ausência de um sistema que regule essa assistência tendo por base a evidência científica disponível.

Pois, além dos muros da análise crítica ética que temos feito na literatura nova, essa evidência é na maior parte das vezes antiga (em uso nos sistemas mundiais há muitos anos com resultados publicados que proíbem a continuidade do que ainda temos praticado), óbvia (pois mesmo que não conhecêssemos a informação científica disponível, esta já é praticada nos “melhores” centros médicos de nosso país), e acessível (pois envolve recursos muito menores do que os que tem sido gastos no “overuse”).

Mas, quais os motivos e as consequências do “underuse”? Imaginemos então, alguns exemplos de áreas assistenciais nas quais há evidência suficiente para sustentar ações produtoras de benefício ou redução de dano aos pacientes:

 
  1. Não investir em medidas preventivas, produzindo direta ou indiretamente dano aos pacientes por aumento de eventos evitáveis, como eventos cardiovasculares, traumas, infecções, câncer etc.;
  2. Não adotar de modo homogêneo procedimentos superiores a outros (ainda em uso) para as mesmas situações clínicas, produzindo dano aos pacientes ao não reduzir o risco de eventos também evitáveis, como complicações, hospitalização, recorrência, erro diagnóstico etc.;
  3. Não identificar claramente grupos de pacientes de prognóstico pior, sem otimizar o cuidado de modo estratificado e sem individualização, limitando-se a caracterizar pacientes por códigos de doença, como em cirurgias com e sem comorbidades, ou em idosos ou crianças;
  4. Não coletar dados de resultados em relação aos principais desfechos de interesse, e consequentemente sem a possibilidade de mudanças ou interrupção de práticas centradas nos pacientes, cujos resultados não reproduzem aqueles estimados pela evidência;
  5. Não lutar por homogeneização da prática, estabelecendo um “portfólio” básico, funda- mental, e necessário para o enfrentamento das diversas condições de saúde locais e regionais, evitando a inequidade, como em técnicas cirúrgicas utilizadas, atendimento de emergência etc.

É claro que uma forma de assistência não baseada em evidência expõe a todos ao “underuse”, e além do dano produzido aos pacientes, é claro também que o sistema sofre com o desperdício de recursos, pois onde há mais complicações, mais hospitalizações, maior tempo de internação, mais infecções, pior estágio de doença, mais exames, mais cirurgias, mais eventos ou desfechos evitáveis etc., há maior gasto também evitável de recursos.

A evitação e o combate à injustiça do “underuse” não é apenas uma questão de civilidade e humanismo moderno e inovador, mas um problema evitável pelo uso sistêmico e apropriado da evidência científica disponível, que proporciona ao sistema a assistência de qualidade, sustentável e padronizada. Muito mais pode ser feito por meio da formulação de questões que estimulem a reavaliação constante das práticas atualmente adotadas por todos, em uma atitude que revela o desejo de se interromper condutas proibitivas, e de instituir ou manter apenas condutas recomendadas, deixando para trás o “underuse”.