Medicina Baseada em Evidências

Por Wanderley Marques Bernardo
 
A forma latina da expressão Ipse dixit¹ é atribuída ao filósofo romano Marcus Tullius Cicero (106- 43 a.c.) e tem o significado de “ele mesmo disse”. 
 
Trata-se de uma afirmação sem prova, uma expressão dogmática de opinião ou uma falácia que consiste em defender uma proposição afirmando, sem mais justificativas, que ela é “exatamente como ela é”, por se tratar de uma questão intrínseca, imutável, a saber: o argumentum ad verecundiam ou argumentum magister dixit
 
O argumentum ad verecundiam ou argumentum magister dixit é uma expressão em latim que significa apelo à autoridade ou argumento de autoridade que dispensa o raciocínio ou a evidência. É uma prosa lógica que se sustenta pela palavra ou reputação de alguma autoridade ou instituição, a fim de validar o argumento. E, absurdamente e comodamente, suas conclusões se baseiam exclusiva¬mente na credibilidade do autor da proposição e não nas razões que ele apresentou para sustentá-la. 
 
Apesar das origens dessa expressão antecederem o nascimento de Cristo, os conflitos gerados pelo seu uso e abuso invadem o período após Cristo como método de desqualificar as provas e de manter “tudo como está”, oprimindo iniciativas de libertação, como a que exemplificamos no trecho que transcrevo a seguir do segundo debate de Abraham Lincoln com Stephen A. Douglas², no dia 27 de agosto de 1858, em Freeport Illinois, na página 48: 
 
“Eu passo um ou dois pontos que tenho porque meu tempo expirará muito em breve, mas devo poder dizer que o juiz Douglas se repete novamente, como fez em uma ou duas outras ocasiões ao dizer à enormidade de Lincoln - um indivíduo insignificante como Lincoln -, em seu ipse dixit, acusando uma conspiração de um grande número de membros do Congresso, a Suprema Corte e dois presidentes, para nacionalizar a escravidão. Quero dizer que, em primeiro lugar, não fiz esse tipo de acusação baseado em meu ipse dixit. Apenas expus as evidências tendentes a prová-las, e as apresentei ao entendimento dos outros, dizendo o que acho que prova, mas dando a você os meios de julgar se prova ou não. Foi exatamente isso que fiz. Eu não o coloquei no meu ipse dixit. Nesta ocasião, desejo recordar sua atenção a uma evidência que apresentei [...]”
 
O 16º presidente dos EUA “Abraham Lincoln” é assassinado sete anos após esse discurso denunciando uma conspiração contra a libertação, defendida por ele, da escravidão do ser humano nos EUA. E, apesar de apresentar evidências para que pudessem ser livremente julgadas (princípio da democracia), é acusado inveridicamente de praticar ipse dixit pelo seu debatedor, que na ausência de provas contrárias só lhe restava buscar a desqualificação. 
 
No passado, o método científico disponível para gerar evidência era muito mais limitado do que no tempo atual e, portanto, os conceitos também eram. Mas, mesmo assim, já existia a dicotomia entre presença de prova ou “eu estou falando”, semelhante aos nossos dias. E o envolvimento da política também, pois evidência e democracia estavam visivelmente associadas, visto que a “politização” é um fenômeno natural positivo de contextualização científica. 
Infelizmente, entretanto a natureza humana autogarantidora e autopreservadora, em um reflexo medular, age infantilmente e egoisticamente na direção do próprio umbigo. Mesmo em situações graves de elevada mortalidade, não consegue simplesmente ser transparente e pensar no próximo, que no caso são os pacientes ou os potenciais pacientes de Covid-19. 
 
A evidência disponível de eficácia ou acurácia não é impositiva ou dogmática, mas é um elemento a mais para auxiliar na tomada de decisão, e não a adotar é sempre uma opção. Apenas não devemos omiti-la ou gastar tempo em esforço inútil em desqualificá-la, principalmente quando não temos evidência para sustentar o que queremos recomendar. 
É cômodo o método de sempre criticar ou nunca se esforçar para aprender a analisar tecnicamente “as provas”, mesmo que não seja capaz de produzi-las, mas é imperdoável a inconsequência e o descompromisso em não considerar a evidência na tomada de decisão, partindo do pressuposto que o risco é do paciente e não de quem exerce o seu ipse dixit. 
 
A evidência estabelece parâmetro e não abre a porta para uma afirmação sem prova em nome da autonomia e do direito à escolha, que aparentemente está mais alinhado com o conceito de democracia, mas que na verdade traduz uma atitude obscura e não reprodutível, que expõe os pacientes a incertezas e distrações pelo exercício da política romana de “remédio e circo”. 
 
Não precisamos fazer qualquer coisa pois não conseguimos ou não queremos fazer o que é necessário. A transparência de nossa incapacidade é desejada e faz parte da prática baseada em evidência desde os primórdios da humanidade democrática e ética. Precisamos tentar sempre o que é melhor aos pacientes baseando-nos na ciência que cada vez mais avança no reforço de alguns conceitos humanos fundamentais durante essa epidemia da Covid-19, pois a ciência também aprende com seus erros: 
 
1. Somos muitas vezes impotentes; 
2. Não podemos tudo; 
3. Não conseguimos tudo; 
4. Nos esforçamos para fazer o que devemos; 
5. Se não fazemos, admitimos; 
6. Nos preparamos para o futuro; 
7. Não exercemos nosso ipse dixit. 
 
Além de tudo, devemos assumir as consequências dos limites de nossa humanidade em um combate constante ao exercício de muitos de seu ipse dixit, pois frente à perseverante geração de evidência científica por poucos, só restará (ou não) no futuro, para quem exerce o ipse dixitismo, uma triste e inútil mea culpa por todas as consequências negativas produzidas aos pacientes.
 
Referências 
1. “Ipse dixit.” Merriam-Webster.com Dictionary, Merriam-Webster, https://www.merriam-webster.com/dictionary/ ipse%20dixit. Accessed 20 Jul. 2020. 
2. Segundo debate de Abraham Lincoln com Stephen A. Douglas em 27 de agosto de 1858 em Freeport Illinois página 48. https://quod.lib.umich.edu/l/lincoln/lincoln3/1:5.1?rgn=div2;singlegenre=All;sort=occur;subview=detail;type=s imple;view=fulltext;q1=ipse+dixit