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REVISTA VIVA
P
ara fazer diferente, inovar ou revolucionar é preciso, an-
tes de tudo, ser livre. Neste caso, mesmo se decidirmos
conservar tudodo jeitoque está, estaremos imprimindo
no mundo um ritmo inusitado, inesperado. O da conservação.
Emmeio a tudo que simplesmente deixa de ser e se transforma
o tempo todo. Portanto, é de ser livre que se trata aqui.Mas nem
tudo é tão fácil. E a noção de liberdade é escorregadia. Abriga
sentidos muito distintos uns dos outros.
Liberdadede agir. De fazer alguma coisa. Liberdade física. De
movimento, de deslocamento. Liberdade evidente numanimal
selvagem. Sobre a qual não pairam dúvidas. Sua realidade é
comprovada o tempo todo. Pela experiência de cada um. Um
animal que age apenas por sua vontade é livre. Neste sentido
físico da liberdade. Também dizemos que uma pessoa é livre,
ou dona do seu nariz, quando pode agir de acordo comsua von-
tade. Como na degustação de umpastel de feira acompanhado
de um copo de caldo de cana. O mesmo diríamos de todo um
povo. Que é livre quando pode definir sua própria trajetória.
Afinal, a liberdade política é, antes de tudo, física.
Esta liberdade para agir é o contrário da obrigação. Ou da
escravidão. Ou ainda, como observa Hobbes, ausência de qual-
quer impedimento que se oponha ao movimento. A água que
se encontra num copo não é livre. Porque este último impede
seumovimento. Ficamais claroquando o obstáculo é removido.
O copo se rompe. E a água recupera sua liberdade. Tambémos
antigos espartilhos ou as mais recentes meias antivarizes. Im-
pedimento à expansão das carnes e suas gorduras. Da mesma
forma, qualquer um de nós será livre para agir quando nada
nem ninguém o impedir.
Esta liberdade nunca é nula. Nem absoluta. De um lado,
mesmo quando só há obstáculos, algummovimento é sempre
possível. No copo, líquidos se agitam. Roupas apertadas esgar-
çamcomo tempo. E ainda, na cela, o prisioneiro simplesmente
se levanta, comanda operações de tráfico oumesmo uma revo-
lução contra o poder do Estado. De fato, enquanto houver vida
em seres moventes, nunca é nula a liberdade de movimento.
Em contrapartida, esta mesma liberdade também nunca será
absoluta. Afinal, ninguémpode fazer, a todo omomento, tudo o
que quer. Porque não estamos sós. E deslocamentos produzem
efeitos. Afetama trajetória alheia. Convertendo toda convivên-
cia numa sequência de obstáculos.
Muitos destes obstáculos ganham estatuto de lei. E é, pa-
radoxalmente, graças a elas, que algumas liberdades rema-
nescentes se tornamefetivas. Não há liberdade sem lei, ensina
Locke. É como abrirmão de umpedaço da torta para ter certeza
de dispor do resto. Que se ameaçado, poderá ser exigido. Porque
amesma força que nos limita, limita os outros. Podendo, assim,
garantir uma liberdade que mesmo não sendo absoluta, tem
realidade e valor incontestável.
Consideramos uma eleição democrática, quando o povo,
livremente, escolhe seus representantes. De fato, respeitadas
as regras eleitorais e a oferta do mercado das candidaturas,
cada cidadão comparece à urna e vota, sem constrangimento.
Liberdade de votar. Liberdade física de apertar os botões cor-
respondentes ao candidato que consideramais adequado. Que
pressupõe uma vontade anterior. Uma intenção de voto. Mas,
ainda assim, cabe a pergunta: Terá havido liberdade de querer
votar neste ou naquele dos postulantes?
Se não houver liberdade para querer, também não haverá
paraagir eparapensar. Seremos escravos das próprias paixões. E
todomovimento oupensamento será o resultado necessário de
movimentos dematéria e energia emnós. Neste caso, também
não faria sentidopensar emmoral. Porque estapressupõenossa
soberania e autodeterminação. Condeno assim o querido leitor
a ummomento de reflexão e angústia. Mas é só até a próxima.
Clóvis de Barros
é Dr. emDireito pela
Universidade de Paris IV, Dr. emComunicação
pela Universidade de Navarra da Espanha e pela
ECA / USP. É autor de livros de comunicação e
professor livre-docente pela ECA / USP, alémde
conferencista do Espaço Ética.
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Por
Clóvis de Barros
FELICIDADE
Livre
para inovar
conservar
e para